sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A epopéia de Urbana e Omar

No começo até se entenderam bem... Ele estava lá como sempre havia estado, pra se aproximar demorava anos, séculos talvez. Ela chegou também tímida, mostrando a ele que a vida era muito mais do que ficar deitado sobre a cama granulada. Trouxe-lhe um pouco mais de atividade, agitação e até mesmo utilidade.

Ele ficou feliz, recebeu-a bem e sempre lhe dava os mais belos presentes: conchas, estrelas, viajantes... De vez em quando se exibia mostrando a potência de sua voz e a força de seus braços. Perdão pelo lapso, mas tinha esquecido de dizer que apesar de arredio ele era exibido. Mostrava a ela como sabia ser poderoso e arrebatador quando queria. Preparava um espetáculo de espuma, vento e respingos que a deixava embasbacada.

Depois tudo começou a mudar. Ela começou a exigir mais espaço, e como era espaçosa! Tanto que não se contentava mais com o que tinha e passou a tomar conta do espaço dele. Ele, muito tolerante, foi cedendo aos caprichos da amada. Não deixava, nem mesmo uma manhã, de refletir o alaranjado da aurora só para fazê-la sorrir.

Mas ela já não lhe fazia atenção. Dia e noite o insultava, despejava nele toda a sua raiva e descarregava suas amarguras. Tirou dele tudo o que tinha de valor, destruiu-lhe a vida.

Ele, já cinza de tanta tristeza, acabou se cansando. Começou a exigir seu espaço de volta. Aí, então, ela já não teve mais o que fazer. Só podia ficar ali onde estava, passiva, enquanto ele lhe moia os ossos, inundava suas veias de sal e afogava suas defesas.

Aquela que um dia achou-se poderosa, não mais pôde resistir. Submersa nas lágrimas de raiva que ele derramou, calou-se, enfim.

domingo, 15 de agosto de 2010

Inimigo com números



-Alô!

-Oi, chame Djalma por favor, filho!

-Desculpa, mas não tem nenhum Djalma aqui, não.

-Como não tem? Djalma que me deu esse número.

-Sim, senhor... Mas o senhor deve ter ligado errado.

-Então, rapaz... Aí não é um orelhão?

-Não, senhor.

-Não fica no bar na esquina da casa de Djalma?

-Não, senhor... Esse número é de uma linha particular.

-Ah, sim... Então chame Djalma aí, faz favor.

-Já disse que não tem nenhum Djalma aqui. O senhor está me incomodando, estou ocupado, tenho muitas coisas pra fazer!

-Sim filho... Não precisa ficar bravo comigo. Chame Djalma pra mim que lhe deixo em paz.

-Meu senhor, qual o número que o senhor ligou?

-XXXX-XXXX, não é esse número?

-É sim, senhor. Mas...

-Então, rapaz... Chame logo Djalma que to com pressa, não tô de brincadeira, não!

-Mas eu não sei quem é Djalma!

-É um rapaz forte, moreno, que trabalha consertando geladeira... Faz favor de chamar ele pra mim.

-Mas meu senhor, como que eu posso chamar o Djalma se...

-Ih, espere um instante que a campainha tocou. Rapaz, Djalma chegou aqui. Se apoquente não que eu digo que você quer falar com ele.

-Não, senhor, eu...

-Não, não rapaz. Tenho tempo, não... Preciso falar com Djalma. Eu dou seu recado.


Paz, finalmente...


-Alô!

-Rapaz, esqueci de perguntar seu nome. Diga pra mim, por favor, filho, pra eu dar o recado pra Djalma.

-Meu nome é Abelardo, mas...

-Como?

-Abelardo, mas...

-Hein?

-ABELARDO, mas eu...

-Ah não rapaz, tem ninguém aqui com esse nome não. Aqui só tá Djalma...

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Oração


Orar + ação
Da fé mais singela expressão
Prova do impossível de ver
Certeza do que ainda vai acontecer

Orar
Para me libertar
Para Te encontrar
Para os alcançar

Ação
Deve brotar do coração
É resistir à tentação
Chorar as lágrimas do irmão

Pobre daquele que ora sem agir
E do que age sem ouvir


(por sugestão da Mari Aylmer e inspiração da Babi Guimarães... pra vcs!)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Entrega

Meu maior erro
Meu maior destempero
Meu mais brilhante desaforo
Minha grande confusão

Ter-te é minha morte
Querer-te é minha condição
Por mais que eu não suporte
Grita alto minha emoção

Desisto.
Não mais resisto.
E se ainda insisto

É porque me socorre o Cristo.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Revelação Natural


Levantou-se aquele dia e percebeu que já não podia mais. Estava cansada de viver. Afinal, viver é o jorrar incessante de lágrimas e, assim sendo, já tinha vivido tudo o que tinha para viver. Tomou a corajosa decisão de acabar com sua vida, já que ninguém lhe fazia esse favor. Não diretamente.

Sentiu o travesseiro ainda molhado, cambaleou ao se pôr de pé e foi escovar os dentes para tirar o gosto amargo de suas lágrimas. Ali mesmo, preparou como o mais experiente barman seu último coquetel. Alguns calmantes, analgésicos e, pra dar um charme, pastilhas efervescentes.

Pegou seu drinque com a sutileza ensinada pelos jantares compartilhados com pessoas de famílias importantes. Voltou ao quarto e sentou-se na cama. Ah! O gosto que sua única aventura ousada teria...

Ouviu barulhos vindos da janela. Bem agora?! Ignoraria.

Olhou novamente para o seu fascinante elixir da eternidade, determinada. Mais barulhos vindos da janela. Muito a contragosto, decidiu interromper seu compromisso para ir olhar. Demorou um pouco para lembrar como se abriam aquelas cortinas, mas conseguiu. Surpreendeu-se com a visão da plumagem multicolorida, o peito empinado, o bico levantado.

Tentou voltar aos afazeres, mas seu inconveniente visitante começou a cantar. Parou atônita. Nunca ouvira algo assim. Indiferente, o mensageiro continuava a cantar, cada vez mais alto, muito serelepe. Acabou que Regina esqueceu-se do que estava fazendo e ficou observando. Aos poucos, os músculos de sua face começaram a comportar-se de forma estranha. Mexiam-se de forma involuntária, preparando-se para uma ação que não sabia muito bem o que era. Estava fora de controle.

Seus olhos não obedeciam, muito menos suas pernas e mãos. E sua boca... O que estava acontecendo? Aos poucos, delineou-se um formato desconhecido. Seus lábios expandiram para os lados, separaram-se. Com muita dificuldade formou-se um sorriso(!).

Não entendeu muito bem, mas sentiu vontade de viver mais um dia...